A contratação de trabalhadores por meio de pessoa jurídica (popularmente chamada “pejotização”) tornou-se um dos temas mais sensíveis do Direito do Trabalho atual. O debate não ocorre apenas em torno da forma contratual adotada, mas também sobre o desafio de compatibilizar modelos flexíveis de prestação de serviços com critérios legais que continuam estruturados para o emprego clássico.
Um ponto quase sempre ignorado nessa discussão é que, em matéria trabalhista, não existe verdadeira liberdade contratual para definir o regime jurídico aplicável. Assim como ocorre no campo tributário, o enquadramento não depende da vontade das partes, mas de critérios legais objetivos. No sistema fiscal, o contribuinte não escolhe livremente entre lucro presumido, lucro real ou simples nacional; ele é obrigatoriamente enquadrado a partir de parâmetros definidos em lei, como receita bruta, atividade, natureza jurídica, entre outros. A opção só existe quando a legislação a permite, e mesmo nesse caso, dentro de limites estritos.
No Direito do Trabalho, o mesmo raciocínio, pelo menos até então, se impunha: os artigos 2º e 3º da CLT funcionam como verdadeiros critérios de enquadramento jurídico obrigatório, inclusive validada pela própria legislação cível em relação jurídica da mais correlata (art. 593 do Código Civil). Neste sentido, sempre que estivessem presentes a pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade, a relação seria necessariamente considerada de emprego.
Neste cenário não importaria se o contrato assinado trouxesse títulos como “prestação de serviços”, “autônomo”, “consultoria” ou qualquer outra denominação. Assim como o Fisco desconsidera regimes escolhidos artificialmente, a Justiça do Trabalho desconsidera arranjos formais que contradizem a realidade fática (contrato realidade).
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, suspendendo nacionalmente os processos sobre validade de contratos PJ com possível reconhecimento de vínculo, evidencia a magnitude da controvérsia. O volume expressivo de ações é reflexo de um ambiente de incerteza, mas também de outro fenômeno menos debatido: a expansão interpretativa da subordinação pela Justiça do Trabalho.
Em diferentes decisões, elementos próprios da autonomia profissional têm sido reinterpretados como indícios de emprego, alimentando uma proteção tão ampla que, na prática, torna quase impossível delimitar com segurança o espaço legítimo do trabalho autônomo.
As plataformas digitais são exemplo emblemático. Relatórios do IPEA (2023), estudos da OCDE e publicações recentes do Dieese mostram que a maior parte dos trabalhadores de aplicativos atua com ampla liberdade para definir horários, aceitar corridas e trabalhar simultaneamente em várias plataformas (características típicas da autonomia). Mesmo assim, surgiram decisões que reconhecera o vínculo com base em conceitos ampliados de “subordinação algorítmica”, sem parâmetros objetivos universalmente aceitos.
O resultado é um cenário de instabilidade em que a proteção, ao invés de equilibrar relações, cria zonas cinzentas que dificultam a previsibilidade de empresas e trabalhadores. Questão emblemática foi a ação movida pelo Ministério Público do Trabalho e acolhida pela Justiça do Trabalho, que além de impor obrigações discutíveis à Plataforma, trouxe uma condenação expressiva. Assim, ao invés de deixar o complexo e espinhoso assunto para o legislativo em uma discussão mais ampla e sistémica, o judiciário trabalhista quis avocar esta discussão sob o seu julgo e seus critérios, o que não soou bem: tanto que o STF interveio.
Por outro lado, também é fato que, a pejotização, quando aplicada sem critérios, pode mascarar relações genuinamente subordinadas. Em sentido contrário, pesquisas do IBGE e análises do Dieese indicam que grande parcela dos “autônomos” opera em atividades repetitivas, com baixa autonomia e forte dependência econômica, situações que, sob a ótica material, se aproximam muito mais do emprego do que da atividade empresarial.
Ainda assim, há espaços legítimos para o modelo PJ, sobretudo entre profissionais qualificados, executivos, especialistas e consultores que possuem capacidade negocial real e autonomia econômica efetiva. Nesses casos, o uso da pessoa jurídica poderia ser considerado mais legítimo e, mesmo, legal para afastar as condições de fraude, como instrumento legítimo de gestão de carreira e organização produtiva. Porém, neste aspecto, não se pode esquecer que a legislação também teria que ser devidamente atualizada para fornecer a direção necessária, alijando o judiciário de resolver um problema que não necessariamente lhe compete.
O cerne do problema, portanto, não está no modelo contratual, mas na ausência de critérios legais e jurisprudenciais suficientemente objetivos para diferenciar autonomia verdadeira de subordinação disfarçada, o que perpassa pela insegurança jurídicas das decisões. Enquanto a legislação trabalhista opera com conceitos fechados, a jurisprudência por vezes expande sua interpretação em busca de proteção, gerando um ambiente híbrido de regras rígidas e aplicação elástica.
Empresas, especialmente em fusões e aquisições ou em processos de reorganização corporativa, têm reagido migrando PJs para CLT por temor de passivos, mesmo quando essa mudança possa gerar outros riscos. Esse movimento demonstra que o excesso de proteção, quando desacompanhado de clareza normativa ou interpretativa, não fortalece direitos: apenas amplia incertezas e encarece operações.
Nesse contexto, o STF passou a exercer papel essencial, com propósito claro de moderar excessos interpretativos e reequilibrar a aplicação do Direito do Trabalho. A fixação de parâmetros objetivos (tal como ocorre no enquadramento fiscal) seria um avanço relevante para diferenciar: autônomo genuíno; empregado disfarçado; e modelos intermediários, que assegurem direitos mínimos sem sacrificar a flexibilidade.
Não se trata de restringir proteção, mas de substituí-la por regras claras, previsíveis e uniformes. Somente assim será possível conciliar liberdade econômica, transparência contratual e proteção adequada, sem transformar a pejotização em sinônimo automático de fraude nem permitir seu uso irresponsável como mecanismo de supressão de direitos.
Espera-se que o STF traga uma solução equilibrada para um problema.
Escrito por Fernando de Morais Pauli, Advogado Sênior na Arnone Advogados Associados.